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domingo, abril 20, 2003

Noite 

Ontem bebi um bocado demais – foi um dia inebriante.

Passei a tarde a beber imperiais num café cá da aldeia. Fui jantar fora. A minha mãe telefona-me a saber se vou jantar a casa. Corro seis bares e vou a uma discoteca. Encontro uma amiga.

Faço todos os três esforços hercúleos da parte de alguém que bebeu uns copos enquanto conversa. Não vomitar a pessoa com quem estás a falar; não cuspir a pessoa com quem estás a falar; lembrares-te do nome da pessoa com quem estás a falar.

Tento convencê-la da sensação inefável de passear na praia em uma noite quente de semi-lua cheia. Falo-lhe do mar, do vento que te afaga as costas e da areia macia nos teus pés descalços.

Era inacreditável. Ali estava eu perante alguém a dizer um rotundo NÃO. Enquanto ela dizia que estava envolvida com outra pessoa ocorreu me que afinal não dói nada, enquanto ela dizia que eu era mais do que um amigo, como um irmão para ela eu considerei informá-la da minha teoria vanguardista que considera o incesto uma parvoíce inventada pela sociedade para dificultar os relacionamentos inter familiares, enquanto ela dizia para eu não ficar zangado eu pensava se não me teria esquecido de me pentear nesse dia. Disse-lhe que tinha de ir à casa de banho chorar um bocado.

Fui vomitar. (Referência ao poema de Augusto Gil intitulado “Neve” (“Batem leve, levemente,... FUI ver...”))

Ao sair da casa de banho encontro uma amiga da escola de música onde andei quando era novo. Ela tinha dez anos quando eu tinha dezassete e lhe ensinava solfejo e ela gostava de mim. Agora cresceu. Pergunta-me o que estou eu ali a fazer. Sorrio complacente e digo-lhe com voz amena e o ar mais simpático de que fui capaz “Estou-me a embebedar”.

Afastou-se rapidamente – fugiu. Engraçado, fez-me lembrar uma cabrita apressada a fugir do lobo mau. Mas que raio é que um homem racional haveria de estar às 4 da manhã ali a fazer? Claro que da próxima vez que me perguntarem o mesmo, respondo que estou a debater-me interiormente com a razão da influência do oxigénio na oxidação das células e do seu consequente envelhecimento.

Venho embora. O caminho de volta para casa é efectuado por um caminho interior tortuoso que tem a sua hora de ponta entre a 3 e as 7 da manhã preenchido por condutores que fogem à polícia. É uma estrada cheia de precipícios, onde tens de subir e descer uma serra, com uma vista fabulosa de dia.

Descrevo e recomendo como absolutamente fantástica a sensação de estacar a meio do caminho de regresso, ao lado da maior ravina. Paras o carro bem perto, deleitas-te com a imagem da noite e da lua na cordilheira e voltas a aclamar aquele como lugar de eleição para o teu suicídio.

Respiras fundo o ar frio e profundo da montanha, assombras-te com a fantástica imensidão da serra, sentes-te mais pequeno, voltas a jurar que vais passar a fazer aquela curva mais devagar e mijas lá para baixo.

Chega um carro da polícia que para um bocado à frente do meu. Penso na fantástica sorte que tenho em não estar a conduzir. Saem dois guardas e perguntam-me o que estou a fazer.

Lembrei-me de Jack Kerouac, quando refere no seu livro “On The Road”, que o culminar da adolescência é uma noite na cadeia.

Sorrio com a ideia e digo ao agente com um sorriso entre o brincalhão e o inocente “Estou a mijar”. Ficaram furiosos, claro.

Enquanto me abotoo perguntam-me se bebi. Disse-lhes que sim. Perguntaram me se estava a conduzir e eu disse que não, perguntaram-me porque é que o carro estava a trabalhar e com a porta aberta e disse-lhes que estava com frio.

Multaram-me por mau estacionamento.

Enquanto eles se afastam telefono à Inglesa de Espírito Muito Aberto que mora lá na aldeia e que já dormiu com um décimo dos seu habitantes. Contei-lhe que tinha sido posto fora de casa por ter vendido charros à minha irmã e que precisava de um sítio para dormir.

Percebi que não estava sozinha, a cabra, mas disse-me que podia dormir no sofá, se eu quisesse.

Era demais. Pensei “Não!”. Gritei “Foda-se!”, o mais alto que pude. A montanha devolveu-me “dasse”, “dasse”, “dasse”.

Dei um pontapé furioso num pneu, entrei no carro, abri o porta-luvas, anexei a nova multa cuidadosamente às restantes 16 que lá tinha e continuei viagem.

Fui para casa dela. Não me quer deixar entrar – diz que estou bêbedo. O meu melhor amigo reconhece a minha voz e desce as escadas, nu. Ela fica furiosa e eu rio tanto que pensei que morria.

É meio-dia. A minha mãe telefona-me para saber se vou almoçar a casa.

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